As (in)fidelidades da tradução

De TradWiki 2.0

Referência[editar | editar código-fonte]

AUBERT, Francis Heinrich. As (in)fidelidades da tradução: Servidões e autonomia do tradutor. 2.ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

Capítulos[editar | editar código-fonte]

Introdução[editar | editar código-fonte]

Há uma visão bastante difundida acerca do papel do tradutor, que o vê como um simples canal pelo qual deva passar uma mensagem de um código a outro, sem a presença de ruídos. Se houver ruídos nessa passagem, serão considerados como erros do tradutor, frutos de sua incompetência no desenvolvimento do trabalho ao qual se propôs. Caso não os haja, a figura do tradutor fica apagada. Dessa forma, geralmente o tradutor é lembrado em suas falhas e esquecido em seus acertos, além de ser considerado como figura secundária, sem outro êxito que não o próprio apagamento. (p. 7) Admite-se que existem casos de incompetência na tradução, como em qualquer outra área, mas não é propriamente essa a questão a ser discutida. O autor, na verdade, estabelece outras questões como diretrizes para seu trabalho: É cabível exigir do tradutor o seu próprio apagamento? Em que medida é aceitável o desvio do texto traduzido em relação ao original? Admitida a diversidade linguística e cultural, sem as quais estaria prejudicada a própria razão de ser da tradução, até que ponto a diversidade constitui, efetivamente, um conjunto de ‘servidões’ impositivas? (p. 8) Para responder a tais indagações, Aubert se propõe a empreender uma investigação acerca de diversos fatores intra e intersubjetivos, temporais, linguísticos e culturais que, como dissemos acima, influenciam o desenrolar do processo tradutório e, conseqüentemente, seu produto, o texto traduzido. (p. 8/9) Parte-se, então, para uma tentativa de delinear a situação-tipo na qual se faz necessária uma tradução. Assim, supõe-se que uma tradução seja necessária sempre que ocorrer um bloqueio parcial ou total, causado pela variação linguística, na relação comunicativa entre Emissor e Receptor. A tradução é, portanto, uma segunda relação comunicativa que pretende substituir a primeira, buscando manter com essa um vínculo de equivalência, ou seja, sendo necessariamente diferente desta em um ou mais aspectos, tem por objetivo produzir os mesmos efeitos de sentido. (p. 9 a 11) Deve-se esclarecer que a variação linguística que motiva a tradução deve ser entendida em seu mais amplo sentido, o qual inclui variações geográficas (línguas, dialetos, falares regionais), temporais (dialetos diacrônicos), sociais (socioletos), individuais (idioletos), de canal (escrita/fala) e até circunstanciais (condições de produção da mensagem numa determinada situação). (p. 11) O esquema clássico da comunicação criado por Jakobson (1969), transposto para as situações nas quais ocorre a tradução, apresenta-se da seguinte forma:

    REFERENTE 1						        REFERENTE 2
    EMISSOR 1  MENSAGEM 1  RECEPTOR 1 	       => 		EMISSOR 2  MENSAGEM 2  RECEPTOR 2/RECEPTOR 3
    CANAL 1				     			CANAL 2
    CÓDIGO 1						        CÓDIGO 2

Cada componente dessa seqüência comunicativa envolve um conjunto de variáveis psicosociais, linguísticas, factuais, econômicas, jurídicas etc. Ocorrem também interações entre essas variáveis, produzindo, em princípio, possibilidades de interdependências teoricamente infinitas, embora passíveis de categorização. Um dos intuitos de Aubert neste trabalho é propor tal categorização a partir do estudo das variáveis envolvidas no ato tradutório, tentando, por meio das reflexões encaminhadas, propor respostas às questões levantadas no início. (p. 13/14)

A dimensão temporal[editar | editar código-fonte]

Entre a produção do ato comunicativo inicial e o ato comunicativo tradutório há necessariamente um intervalo, o qual pode ser extremamente breve, como na interpretação simultânea, ou corresponder a dias, semanas, anos ou até mesmo séculos e milênios. (p. 15) Na verdade, a questão temporal na tradução envolve as distâncias (a) entre a conclusão da produção do primeiro ato comunicativo e o primeiro contato do tradutor com ele; (b) entre a conclusão do processo de produção do primeiro ato comunicativo e o início do processo tradutório; (c) entre o primeiro contato do tradutor com o primeiro ato de comunicação e o início efetivo do ato tradutório, o que diz respeito à memória; e (d) entre o início e o fim do ato tradutório, referente à questão do prazo. (p. 15/16) Todos esses fatores de distanciamento temporal influem no surgimento de maiores ou menores discrepâncias em relação a pontos de vista, interpretações, visões de mundo entre o original e a tradução, resultando em maior ou menor esforço necessário na tradução caso se pretenda evitar ou amenizar tais discrepâncias. (p. 17) O diferencial de tipo (c) refere-se à memória. Quanto maior o distanciamento temporal, mais o original vai perdendo suas características estruturais, mantendo apenas as idéias principais, o que, no ato da tradução, enseja uma maior apropriação do texto original por parte do tradutor. Não se faz aqui qualquer juízo de valor em relação a esta apropriação. Sua maior ou menor adequação depende da análise da situação de tradução como um todo e, em particular, da sua coerência com a intenção comunicativa do tradutor e/ou com a intenção comunicativa receptiva dos destinatários da tradução. (p. 18) Quanto ao diferencial de tempo de tipo (d) — duração da tradução — percebe-se uma certa variação ao longo do processo tradutório nas escolhas lexicais, sintáticas e estilísticas do tradutor, o que, principalmente em textos mais longos, acarreta a necessidade de uma revisão para alcançar uma unicidade/coerência estilística e terminológica. (p. 18/19) Na prática, entretanto, o prazo de realização de uma tradução não depende apenas das necessidades de elaboração e reelaboração do texto traduzido, mas trata-se de uma injunção da situação discursiva, imposta pelos Receptores (Intermediário ou Final) ou com eles negociada. Assim, é praticamente impossível assegurar um quadro temporal “ideal”, que permita um índice qualitativo próximo a 100%. Na verdade, o trabalho do tradutor é precisamente conseguir um produto final de qualidade satisfatória para os Receptores da tradução, no menor prazo possível. (p. 19/20) Portanto, o tradutor deve estabelecer prioridades, isto é, saber distinguir os elementos informativos e lingüísticos de maior importância para a intenção tradutória, os quais necessitarão de um maior dispêndio de tempo. Com efeito, apenas em casos excepcionais, como a tradução de poesia, todos os segmentos terão a mesma relevância informativa e/ou estilísticas. (p. 20/21)

Os participantes do ato tradutório[editar | editar código-fonte]

Tendo anteriormente distinguido Emissor 1 (Emissor Original) e Emissor 2 (Emissor Tradutor), Aubert aqui ressalva que se tratam de papéis diferentes, não necessariamente de pessoas distintas. E ainda quando autor e tradutor são a mesma pessoa psicofísica, o momento, os destinatários e a intenção provavelmente são outros. (p. 23/24) O autor também expõe, baseado em Pêcheux (1969), que “Em qualquer situação de interação intersubjetiva — inclusive, mas não apenas, com o suporte do código linguístico — estabelece-se, entre os participantes (interlocutores), uma rede de relações imagéticas (hipóteses)”. Essa rede é formada pelas imagens que o Emissor e cada um dos Receptores fazem de si mesmos, do mundo (visão de mundo), da situação especifica da interação e uns dos outros (incluindo as imagens das imagens que os outros fazem de cada um desses mesmos elementos). Este princípio aplica-se também ao ato tradutório, mesmo quando autor e tradutor são a mesma pessoa. Na maior parte dos casos, porém, o primeiro Emissor não participa diretamente da relação, mas apenas por meio de um produto seu, o texto original. Da mesma forma, também o consumidor final da tradução é, na grande maioria dos casos, inacessível ao tradutor. Assim, o emissor original e o consumidor final da tradução tendem a permanecer como hipóteses, constructos mentais do tradutor. (Uma exceção a isso seria a interpretação simultânea ou consecutiva, na qual todos os participantes do ato tradutório interagem durante ele.). (p. 24/26) Portanto, os participantes mais diretos da relação tradutória são o Receptor-Tradutor, o Emissor-Tradutor e o Receptor-Intermediário. Mais uma vez percebe-se o desdobramento do tradutor em dois papéis. Como Receptor, o tradutor não é mais como qualquer outro leitor do original; ele não mais visará apenas à reconstituição da mensagem, mas empreenderá uma exploração dos problemas linguísticos (estilo, terminologia etc.) e factuais impostos pela tradução do texto. Como Emissor 2, terá ainda outras contingências: deverá criar o novo texto levando em conta, além do texto original, as condições de recepção dos destinatários da tradução, que são, ao menos parcialmente, distintas das vivenciadas por ele. Serão outras a situação comunicativa e as relações intersubjetivas, e deverá ser outra, portanto, a abordagem do texto durante a tradução. (p. 26/27) O autor considera que o interlocutor privilegiado é o Receptor-Intermediário, pois este tem (ou teria), entre suas funções, estabelecer/negociar o valor da tradução, influenciando no grau de motivação do tradutor, e proporcionar a ele um indicativo das intenções e motivações do receptor final da tradução. Nada garante, entretanto, que suas indicações condigam com o interesse do receptor final, o que é uma das principais dificuldades para um ato tradutório satisfatório para todos os seus participantes. (p. 27/28)

Os códigos[editar | editar código-fonte]

A questão da relação entre códigos refere-se, segundo Aubert, a dois questionamentos principais:

(1) se, a despeito das peculiaridades estruturais de cada língua, (...) existe algum plano (...) em que se possa vislumbrar uma universalidade ou, pelo menos, um paralelismo suficiente para assegurar uma relação de equivalência (...) por meio da qual a tradução possa se realizar; (2) se a visão de mundo imbricada a cada idioma é tão inerente e específica do mesmo que qualquer tentativa de tradução necessariamente redunda em fracasso... (p. 29/30, grifo do Autor)

Se no nível da língua (da langue saussuriana) constata-se a inexistência de sinonímia plena, no domínio da fala (parole) pode haver uma noção de equivalência, válida não somente na tradução interlingual, mas na maior parte das situações de interação baseadas na linguagem humana. (p. 30/31) Efetivamente, as objeções contra a tradução são baseadas na fantasia da identidade, o que na essência não faz sentido, já que a tradução na verdade institui-se em função da diferenciação linguística. Assim, original e tradução não são a mesma mensagem, mas mensagens diferentes com uma equivalência de intenção comunicativa suficiente para que uma seja reconhecida como a tradução da outra. (p. 32) Também pelo fato da tradução situar-se no nível da parole, inclui-se, no conceito de código, não só os componentes fonológico/grafológico, morfossintático, lexical e semântico, mas também a estilística de cada língua. E com este componente, como com os outros, haverá discrepâncias e lacunas — neste caso em relação a usos, registros, estilos — entre um código e outro. (p. 32/33) Outro elemento a se considerar no ato tradutório em função da relação entre Código de Partida e Código de Chegada é a direção da operação tradutória. Com efeito, se retraduzirmos um texto B que seja a tradução de um texto A, não obteremos, literalmente, o mesmo texto original. Segundo o autor, “a própria natureza de cada código resulta em soluções diferentes, não-paralelas, não-espelhadas, conforme a direção adotada no ato tradutório...” (p. 33/34) A questão da visão de mundo relacionada a cada código é um pouco mais complexa. Segundo o Autor, visão de mundo é “um conjunto de representações da realidade que, privilegiada mas não exclusivamente, encontram-se entremeadas na estrutura e no uso de determinada língua. Não se confunde com ‘ideologia’ ou ‘esquemas conceptuais’, embora esteja em clara intersecção com essas noções.” (p. 34/35) Como exemplos de manifestações da visão de mundo na estrutura linguística ele cita, entre outros, o uso, variável de língua para língua, dos conceitos de dúzia, dezena e vintena; a existência ou inexistência morfológica do subjuntivo, ergativo, artigos, dativo de interesse; as diferentes segmentações de campos semânticos (como a divisão do dia em partes, que correspondem a diferentes períodos de uma língua para outra). (p. 35/36)Em relação às influencias da visão de mundo no uso, Aubert menciona as flutuações socioletais, dialetais e até diacrônicas, e as diferenças, de uma língua para outra, nas formas de tratamento, registros formais e informais, gírias, formatos textuais, usos metafóricos de imagens cristalizadas (por exemplo, o correspondente norueguês de “neste angu tem caroço”, que é “det er ugler i mosen”, “há corujas no musgo”). (p. 36/37) Pode-se ver claramente que visão de mundo e código linguístico têm uma relação tão estreita que se pode quase levantar novamente dúvidas sobre a viabilidade de se fazer uma tradução sem distorcer totalmente essas visões de mundo. Empiricamente, no entanto, a prática tradutória demonstra que a vinculação entre visão do mundo e código linguístico não resulta necessariamente numa “impenetrabilidade” de mundos distintos. (p. 37/38) No livro ainda é considerado um terceiro ponto: certas facetas da chamada visão de mundo referem-se a aspectos como faixa etária, ocupação, sexo, credo, flutuação situacional (que, segundo o autor, são “as variações atitudinais, de postura, diante de cada situação específica de interação social realizada por meio da língua”), e o peculiar a cada falante, com sua “biografia linguística”. (p. 39) Portanto, da mesma forma que não podemos desconsiderar o vínculo entre código e visão de mundo, não podemos considerar este vínculo como uma barreira intransponível, capaz de condenar ao fracasso qualquer tentativa de tradução que busque, resgatar tal visão de mundo. Assim, como conclui o autor ao final do capítulo, “essa relação, motivada e essencial em vários planos, não é nem inflexível nem estática: impõe dificuldades evidentes, não muralhas intransponíveis. Varia, em intensidade, de texto a texto a texto e, talvez mais ainda, de uma situação tradutória para outra, exigindo uma avaliação caso a caso. Não constitui mais uma servidão e sim mais um desafio.”. (p. 39/42)

Os referentes e suas expressões no código[editar | editar código-fonte]

Assim como as diferentes visões de mundo (mesma realidade vista de formas diferentes), realidades extralinguísticas (ecológicas, sociais, materiais, ideológicas e religiosas) efetivamente distintas também interferem na realização de uma tradução. Na visão mais comum da tradução, mudam os códigos linguísticos, mas o referente do texto original, frequentemente confundido com seu conteúdo, continua o mesmo, sendo uma das dificuldades da tradução descobrir meios de expressá-lo na língua de chegada. Essa concepção tem uma parcela de verdade, mas a inserção do Referente de Partida no texto traduzido é apenas uma opção do tradutor, não a única postura possível: havendo circunstâncias favoráveis, pode-se pensar numa substituição do Referente de Partida pelo Referente de Chegada, ou numa solução híbrida, mesclando ambos os referentes. (p. 43/44) Como exemplo da primeira opção, temos a tradução de textos sobre tecnologia de ponta. Se a cultura receptora da tradução estiver num estágio menos avançado de desenvolvimento tecnológico, ela tenderá a absorver as informações, dados e conceitos gerados na cultura geradora, utilizando-se de empréstimos, decalques e alguns instrumentos parafrásticos. Já numa tradução juramentada de um instrumento público lavrado num cartório brasileiro, por exemplo, será mantida a mesma feição do documento em qualquer língua de chegada, ainda que alguns termos jurídicos brasileiros não façam sentido na cultura de chegada. No caso de uma tradução não-juramentada do mesmo texto, porém, pode-se tentar uma reescrita mais livre, adequando as indicações referenciais através de supressões, mudanças ou acréscimos. Nessa segunda opção, a própria origem do texto acaba ficando parcial ou totalmente oculta. Talvez a opção mais comum seja por uma solução intermediária, com alguns elementos referenciais do texto de partida mantidos e outros substituídos. (p. 45/46) Tudo depende na verdade da situação tradutória. Nos textos ditos pragmáticos (técnicos, jurídicos e similares), o diferencial de referente é explícito e, portanto, passível de ser isolado e explicado por uma simples nota de rodapé ou um aposto parentético. Já nos textos mais culturalmente marcados, como os literários, esse diferencial é mais sutil, mais impregnado no próprio texto, sendo mais difícil de ser isolado. Assim, o tradutor precisa, a cada ato tradutório (mesmo que às vezes subconscientemente), fazer uma análise global da situação tradutória e das suas necessidades detectáveis, observando a densidade e a “amarração” referencial do texto, para por fim definir qual será sua postura quanto à inserção do referencial de partida na tradução. (p. 47 a 52)

Interação entre os participantes do ato tradutório e o complexo código/referente: A questão das competências[editar | editar código-fonte]

Neste ponto, o autor coloca a questão da competência e do desempenho dos participantes do ato tradutório (Emissor Original, Receptor-Tradutor e Receptor Final) em relação ao código linguístico e ao conhecimento referencial usados na produção dos dois textos. (p. 53) Existe um preconceito muito comum que considera o texto original como algo sagrado, perfeito, e a tradução como algo mortal, cópia defeituosa daquele. Na verdade, na produção de textos, originais ou traduções, o grau de competência e o nível de desempenho dos produtores e consumidores são muito variáveis. Numa situação ideal, o autor escreverá o texto original na sua língua de maior domínio e sobre um referente que conhece em profundidade. O Receptor-Tradutor, tendo um conhecimento ao menos equivalente do referente em questão, escreverá na sua língua de maior domínio, para leitores também com competência lingüística e referencial suficientes. (p. 53/55) A realidade, porém, é bastante diferente disso. O fato de o autor escrever o texto original no seu idioma de domínio mais ativo significa apenas que ele está expressando uma mensagem por meio do código no qual apresenta o seu melhor desempenho, o que não necessariamente representa ou se aproxima de um ideal de competência. E, se o tradutor deverá produzir o texto de chegada no seu idioma de maior domínio, como Receptor estará por consequência utilizando um idioma no qual não tem a mesma competência (a possibilidade de um tradutor com a mesma competência linguística em dois idiomas, apesar de teoricamente possível, é na prática tão excepcional que não precisa ser considerado). Outrossim, especialmente nos casos de línguas largamente utilizadas na comunicação internacional, como o inglês, o espanhol, o francês, entre outras, é comum ocorrer a produção de textos em idiomas que não sejam a primeira língua do emissor. Além disso, os tradutores podem se ver obrigados, na realidade do mercado, a traduzir de uma língua na qual sua competência, ao menos em termos linguísticos, seja precária, ou mesmo traduzir de um idioma para outro sem que nenhum deles seja sua língua de domínio mais ativo. (p. 55/56) Para retratar de forma simplificada as configurações de competência possíveis na tradução, o Autor estabelece uma escala de A (pleno domínio dos recursos expressivos do código) a F (competências ativa e passiva rudimentares) para cada participante do ato tradutório. Considerando a virtual impossibilidade de o tradutor deter num mesmo ato tradutório, como receptor e emissor, a mesma competência linguística, obtém-se um total de 1.080 situações possíveis, apesar de serem pouco prováveis situações extremas como uma em que Emissor-Original, Receptor-Tradutor, Emissor-Tradutor e Receptor Final tenham níveis de competência F ou E, por exemplo. (p. 56 a 58) Este retrato das configurações de competência exposto por Aubert implica inclusive na possibilidade de inversão da situação preconceituosa típica aludida acima: pode ocorrer, e frequentemente ocorre, que o tradutor detenha maior competência linguística, seja como receptor ou como emissor, podendo empreender, durante a tradução, “correções” ou “melhorias” no texto em termos de norma, uso e expressividade. (p. 58) O mesmo pode ocorrer com relação à competência referencial: produtores e destinatários de textos podem ter diferentes domínios do assunto, desde conhecimentos rudimentares até a verdadeira erudição. No entanto, enquanto uma sensível discrepância no nível de competência linguística do tradutor como receptor e emissor podem fazê-lo utilizar estruturas e idiomatismos do código de partida no texto traduzido, tornando-o insatisfatório deste ponto de vista, uma situação similar quanto à competência referencial pode levá-lo a incorporar o referente de partida no espaço do referente de chegada, sem que tal fato seja considerado incompetência, mas sim uma opção tradutória. (p. 59/60) Existe ainda uma relação compensatória entre as competências, ou seja, uma competência linguística mais precária pode ser compensada por um conhecimento referencial elevado, da mesma forma que uma competência lingüística muito boa pode compensar uma menor competência referencial. Ambos os casos permitem a geração de textos traduzidos aceitáveis para seus receptores. A segunda configuração, mais freqüente, justificaria a intervenção de mais um participante no ato tradutório: o revisor ou consultor especialista. Entretanto, a menos que sua participação seja bem delimitada, corre-se o risco de introduzir uma nova leitura, além de interferências nas relações imagéticas entre os interlocutores e discrepâncias de competência linguística, de intenção comunicativa e outras. (p. 60/61)

Os canais[editar | editar código-fonte]

As reflexões aqui empreendidas pelo Autor dizem respeito às interferências dos canais (oral ou escrito) no ato tradutório. Em relação ao canal oral, Aubert faz algumas considerações sobre problemas com canal na interpretação simultânea ou consecutiva. Já em relação à tradução escrita, as dificuldades levantadas referem-se a convenções díspares de sistemas grafêmicos discrepantes. (p. 63 a 71) Consideramos tais reflexões de proveito mínimo, se não nulo, para os objetivos do nosso trabalho, já que não pretendemos abordar a interpretação e, como trataremos da tradução escrita somente entre o italiano e o português, não teremos problemas de diferenças entre os sistemas grafêmicos dos dois idiomas. Dessa forma, não faremos o fichamento deste capítulo como estamos fazendo com os demais.

As mensagens e os limites da “fidelidade”[editar | editar código-fonte]

Ao produzir linguagem, o emissor participa de uma interação comunicativa que possui três tipos de mensagem: a mensagem pretendida, aquilo que o autor “quis dizer”, sua intenção comunicativa; a mensagem virtual, conjunto das interpretações possíveis a partir da mensagem efetivamente gerada; e a mensagem efetiva, realizada na recepção, condicionada em parte pela expressão lingüística e em parte pelo saber e pela intenção receptiva do destinatário. (p. 73) A manifestação da intenção comunicativa do emissor já sofre a interferência das possibilidades expressivas do código e do próprio emissor. Assim, a mensagem pretendida e a virtual mantêm uma intersecção, não uma identidade entre si. Da mesma forma, a mensagem efetiva depreendida pelo receptor é condicionada por sua competência linguística e referencial, pela sua intenção receptiva e pelas condições de recepção, o que a torna diferente da mensagem virtual e da pretendida (não necessariamente mais “pobre” que estas). (p. 73/74) A tradução parte de uma mensagem efetiva decodificada pelo Receptor-Tradutor e a transforma numa segunda mensagem pretendida. Esta, por sua vez, passará pelas mesmas vicissitudes que a primeira, resultando em nova mensagem virtual, a qual será apreendida numa nova mensagem efetiva a cada novo ato de recepção/leitura. (p. 74) Essas circunstâncias põem em questionamento o compromisso, comumente cobrado dos tradutores, de fidelidade ao original, já que não se pode exigir fidelidade a algo inacessível, nesse caso a mensagem pretendida do emissor original. Nem mesmo a mensagem virtual é diretamente acessível ao receptor. (p. 75)

Assim, a matriz primária da fidelidade há de ser, por imposição dos fatos, a mensagem efetiva que o tradutor apreendeu enquanto um entre vários receptores do texto original, experiência individual e única, não-reproduzível por inteiro nem mesmo pelo próprio receptor-tradutor, em outro momento ou sob outras condições de recepção. (p. 75)

O compromisso de fidelidade do tradutor, porém, não é apenas com o texto original, mas também com as expectativas, necessidades e possibilidades dos receptores finais, ou melhor, com a imagem que ele faz delas. Ou seja, o requisito da fidelidade tende a requerer do tradutor a busca de um ponto de equilíbrio entre alteridade e identidade, ponto este que não é fixo e imutável, mas apresenta oscilações condicionadas pelos diversos fatores presentes no processo tradutório. (p. 75/76) Daí ressalta o paradoxo da tradução (extensão do paradoxo da interação comunicativa), explicado pelo Autor da seguinte forma:

As duas fidelidades — para com a mensagem efetiva e para com o destinatário vislumbrado — instituem a diversidade. E a diversidade é a própria justificativa, a razão de ser da tradução. Não fossem diversos os códigos, as culturas, os momentos históricos, os homens, não haveria motivo para se traduzir. Mas, não houvesse a tentativa da fidelidade, a busca sistemática e obstinada de atinar — ainda que em vão — com o que o autor original “quis dizer” e de encontrar meios de expressão para essa intenção comunicativa suposta, também não haveria tradução, diálogo, intertextualidade, intersubjetividade, mas, tão-somente, discursos diversos, cruzados, desconexos, mutuamente incompatíveis. A fidelidade na tradução (...) será, por definição, por essencialidade, um compromisso (instável) entre essas duas tendências aparentemente antagônicas, atingindo a sua plenitude nesse compromisso e nessa instabilidade. (p. 76/77, grifo do Autor)

A autonomia do tradutor e da tradução[editar | editar código-fonte]

Neste último capítulo, Aubert, depois das análises dos fatores condicionantes do ato tradutório feitas nos capítulos anteriores, tenta responder às questões formuladas na Introdução:

(1) é cabível exigir do tradutor o seu próprio apagamento, ou seja, esperar que ele evite, na medida (sobre)humanamente possível, uma atuação que resulte em um filtro entre o texto original e a recepção do texto traduzido na língua de chegada? (2) em que medida os desvios decorrentes de tal confronto são ou não admissíveis na tradução? (3) a diversidade imposta pelas línguas e culturas de partida e de chegada do ato tradutório constitui, efetivamente, um conjunto de “servidões” que se impõem ao tradutor? (p. 79)

A análise das relações imagéticas entre os participantes de qualquer interação comunicativa e a constatação das diferenças entre as mensagens pretendida, virtual e efetiva demonstram a inviabilidade de se exigir o “apagamento” do tradutor. Este, conclui o autor, “terá de tomar decisões nos mais diversos níveis: comunicativo, linguístico, técnico. É, portanto e inevitavelmente, agente, elemento ativo, produtor de texto, de discurso”. (p. 80/81, grifo do Autor) Quanto à segunda questão, chega-se à conclusão de que existem desvios admissíveis e inadmissíveis. De certa forma, é a própria existência do desvio que justifica e institui a tradução. Entretanto, depois de um (in)certo ponto, um texto deixa de ser reconhecível como tradução do outro, embora seja muito difícil, se não impossível, estabelecer in vitro um critério ou conjunto de critérios para estabelecer este limite para toda situação tradutória. Deve-se, portanto, segundo Aubert, “efetuar, caso por caso, uma avaliação global (e não apenas inspirada em uma linguística ou uma estilística comparada) que focalize, com elevada prioridade, a maior ou menor coincidência de intenções comunicativas entre os participantes daquele ato tradutório em particular”. (p. 81/84, grifo do Autor) Aubert considera a terceira questão talvez a de maior importância social, já que sua resposta afeta não somente a postura do tradutor perante sua tarefa, mas também sobre a postura que se espera perante a figura do tradutor. (p. 84) Como se viu nos capítulos anteriores do livro, as exigências linguísticas, sociais, culturais, comunicativas, subjetivas, colocadas ao ato tradutório são geralmente conflitantes, impedindo que o tradutor possa satisfazer integralmente qualquer uma delas. Assim, o autor aponta que seria melhor “perceber que o tradutor, tenha ele consciência do fato ou não, exerce o papel de responsável pela conciliação entre os diversos requisitos, como administrador dos conflitos, gerenciando e negociando, passo a passo, as soluções e os compromissos possíveis.” Com isso, Aubert conclui que “é com base na solução global elaborada, é no quadro geral da conciliação proposta, tanto quanto ou mais do que nos detalhes pinçados a esmo em seu texto, que sua atuação pode ser avaliada." (p. 84/85)