Quase a mesma coisa

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Outras palavras[editar | editar código-fonte]

Quase a mesma coisa, de Umberto Eco. Tradução de Eliana Aguiar, revisão técnica de Raffaella de Fillipis Quental. Editora Record, 458 páginas, R$ 50,00.

Umberto Eco, no primeiro capítulo deste amplo livro sobre as dificuldades da tradução, começa falando sobre a suposta facilidade do traduzir ao analisar as traduções feitas pelo Altavista. Ele submete o pioneiro e hoje esquecido sistema automático de tradução gratuito disponível pela Internet a uma tarefa cruel: a tradução do trecho inicial do Gênesis, retirado da versão inglesa da Bíblia de King James.

Eco tortura a máquina de traduzir obrigando-a a passar o trecho do inglês para o espanhol e para o alemão, e depois ainda de volta ao inglês. Os resultados são todos altamente discutíveis, mas apesar de todos os problemas, o fato é que o programa traduz, seja para que idioma for, e um leitor minimamente informado reconhecerá aquilo como uma tradução do Gênesis.

O exercício, no entanto, não pretende humilhar a máquina ou seus criadores por suas limitadas capacidades tradutórias, mas sim exemplificar uma noção corrente, e simplória, de que traduzir significa apenas encontrar o vocábulo equivalente a uma palavra de um determinado idioma em outro. Isso, até uma máquina faz, como se viu. Mas, como sabe qualquer estudante das centenas de cursos de tradução que vêm proliferando pelo mundo nas últimas décadas, um tradutor profissional não traduz palavras, mas sim textos. E ao falarmos em textos, sejam eles de que área for, literários, financeiros, médicos, jornalísticos, não há como escapar do conceito maior em que estão inseridos, ou seja, seus contextos. Para um tradutor, o contexto é tudo, mas para uma máquina, ele praticamente inexiste.

O livro de Eco analisa os mais variados aspectos da tradução em profundidade. Apesar de sua limitada experiência como tradutor de fato, restrita à tradução de “dois livros de grande empenho”, Exercices de style, de Queneau, e Sylvie, de Gerard de Nerval, Eco argumenta que, ao longo de sua vasta experiência editorial, revisou muitas traduções alheias, além de participar ativamente do processo de tradução de diversos de seus romances, em estreita colaboração com os tradutores. Isso, segundo ele, permite-lhe falar com conhecimento de causa sobre questões-chave da tradução, como a noção de fidelidade ao original ou sobre o seu grande achado: o tradutor como negociador. Uma negociação que implica considerar a situação em que o original foi produzido e sua finalidade, e como manter seu efeito no idioma de destino.

Nessas negociações, há que se considerar aspectos formais (ritmo, registro, vocabulário, etc.), época e situação histórica em que o texto foi produzido, os leitores do original e os leitores da tradução. Situações intraduzíveis, que Eco considera como “perdas irremediáveis” podem ser compensadas em momentos posteriores, graças a um exercício de criatividade do tradutor, adicionando um toque de humor, um trocadilho, a um trecho em que isso não existia no original, para compensar a impossibilidade de traduzir determinado trecho ou expressão, por exemplo.

Esse tipo de solução extrema a que os tradutores às vezes se veem forçados a adotar, em aparente contradição com o original, costuma passar completamente despercebida pelos leitores, que, normalmente não leem traduções com o original do lado, exercício para poucos, em geral, estudantes ou profissionais de tradução. A tradutora Lia Wyler costuma indignar-se com as críticas tolas e despreparadas que recebe por suas traduções da série Harry Potter. Segundo ela, sua tradução não se destina a quem sabe inglês e pode ler os livros no original, mas ao leitor que não pode ou não quer se dar a esse trabalho.

Portanto, só é possível ter real noção do trabalho de um tradutor, sobre seus acertos e seus erros, sabendo-se do tipo de dificuldade encontrada cotidianamente no ofício. Até por isso, Eco faz questão de frisar que só se aventurou em escrever sobre tradução após acumular uma razoável experiência na área, mesmo que não traduzindo predominantemente. E sua experiência extrapola a tradução textual, pois Eco também trata das adaptações entre diferentes meios, usando como exemplo o seu O nome da Rosa, quando questiona se a recriação de um livro em filme pode ser chamada de tradução ou não. Item que, por si só, mereceria uma resenha à parte.

O livro de Eco ajuda a compreender a tradução como um dos fenômenos mais antigos, complexos e essenciais da história da humanidade. E que hoje ganha cada vez mais visibilidade e importância pelo crescimento e diversificação dos meios de comunicação e interação entre os povos. Mal comparando, e adaptando um pouco as palavras de Eco, pode-se dizer que os tradutores — e não só os literários — são o que há de mais próximo aos enciclopedistas na atualidade.

Para finalizar, e por se tratar de um livro como este, vale mencionar a segurança do texto em português da tradutora Eliana Aguiar e da revisora técnica, Raffaella de Fillippis Quental. Principalmente pela pesquisa de traduções em português não incluídas pelo autor, que utiliza exemplos em inglês, alemão, espanhol e italiano, predominantemente. Na ausência de traduções disponíveis, a própria tradutora encarregou-se da tarefa. Um ato de correção e respeito editorial.