Traduzir com autonomia

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Referência[editar | editar código-fonte]

ALVES, Fabio; MAGALHÃES, Célia; PAGANO, Adriana. Traduzir com autonomia: estratégias para o tradutor em formação. São Paulo: Contexto, 2000.

Introdução[editar | editar código-fonte]

Os autores abordam diversas questões de tradução, sempre propondo atividades práticas de tradução do inglês para o português.

Capítulos[editar | editar código-fonte]

Crenças sobre a tradução e o tradutor — revisão e perspectivas para novos planos de ação (Adriana Pagano)[editar | editar código-fonte]

A autora apresenta como um dos fatores que influenciam o processo de aprendizagem e cognição as crenças, ou seja, “todo pressuposto a partir do qual o aprendiz constrói uma visão do que seja aprender e adquirir conhecimento”. Orientado por tais pressupostos que o aprendiz decide o que, como, quando e em quanto tempo aprender. Por referir-se a processos de aprendizagem em geral, essas reflexões também se aplicam à tradução e ao tradutor. Assim, todas aquelas percepções que se tem sobre o que seja traduzir, o que é uma boa tradução, o papel do tradutor etc., afetam o desempenho do tradutor-aprendiz e o trabalho a ser desenvolvido, além de determinar a forma como a sociedade em geral avalia a tradução como profissão e o tradutor como agente dessa atividade. No capítulo são discutidas, por meio da primeira atividade, as cinco crenças abaixo:

  1. A tradução é uma arte reservada a uns poucos que podem exercê-la graças a um dom especial. Segundo a autora, longe de confirmar esta crença, na qual está implícita a ideia de que se nasce tradutor, as pesquisas mostram que, embora um pouco de sensibilidade artística contribua para a beleza de certos textos, especialmente os literários, tradutores competentes e reconhecidos têm uma carreira que envolve experiência e qualificação.
  2. A tradução é uma atividade prática que requer apenas um conhecimento da língua e um bom dicionário. Esta afirmação bastante difundida tem contribuído para fazer da tradução uma atividade pouco reconhecida no mercado de trabalho. Na verdade, a prática da tradução exige habilidades (“competência tradutória”) que ultrapassam o conhecimento meramente linguístico, tais como: conhecimento de aspectos textuais, de coesão e coerência; reconhecimento de macroestruturas textuais e coligações lexicais; domínio de registros e gêneros discursivos; busca de subsídios externos; capacidade de dedução, indução, assimilação e contínua atualização de conhecimentos gerais e específicos etc.
  3. O tradutor deve ser falante bilíngue ou ter morado num país onde se fala a língua estrangeira do par linguístico com que trabalha. A autora afirma que as pesquisas corroboram esta afirmação, mas não em caráter de exclusividade, já que também mostram que, nesses casos, o bilinguismo ou a vivência do tradutor são acompanhados por uma formação que lhe permite um bom desempenho. Não esqueçamos que o falante bilíngue pode ter um domínio limitado das línguas que fala ou não ter algumas das habilidades mencionadas no ponto anterior.
  4. Só se pode traduzir da língua estrangeira para a língua materna, uma vez que só dominamos esta última. A autora aponta que, primeiramente, deve-se lembrar que ser falante nativo de uma língua não habilita automaticamente a traduzir para ela, pois não basta para o exercício da tradução o conhecimento linguístico, sem falar no fato de que falantes nativos possuem diferentes graus de conhecimento e proficiência de sua língua materna. Dessa forma, o domínio da língua estrangeira, aliado a um conhecimento cultural e técnico, e às habilidades necessárias à recriação de um texto, possibilitam a tradução para a língua estrangeira sem problemas. Dificuldades maiores, como as coligações textuais e as tipicidades do falante nativo, estariam hoje próximas de se resolverem graças a bancos de dados de coligações e combinações mais frequentes numa língua e numa cultura.
  5. O tradutor é um traidor e toda tradução envolve certo grau de traição (traduttori, traditori). Esta antiga e difundida afirmação é responsável pelo descrédito que a profissão recebe em certos círculos e é derivada da crença de que uma ideia formulada numa língua pode ser automaticamente transposta para outra, gerando uma tradução única e ideal, ou seja, a tradução perfeita, da qual qualquer variação seria imperfeição, inexatidão, traição. Teorias desenvolvidas já a partir dos anos 50 e novas teorias baseadas em pesquisas acadêmicas mostram a complexidade do processo tradutório, o qual envolve aspectos da produção e recepção de textos, sendo possível existirem, por exemplo, diferentes traduções de um mesmo original, de acordo com os objetivos pretendidos, o público-alvo, a função que se busca atribuir ao texto traduzido e outros fatores que influenciam na recriação de um texto numa nova língua e cultura. E, felizmente, com a ênfase que a tradução vem recebendo nas universidades e centros de estudos que desenvolvem pesquisas na área e a consolidação da disciplina Estudos da Tradução a partir dos anos 80, a ideia de “traição” tem sido cada vez mais contestada.

O objetivo do livro é “desmistificar todas essas crenças citadas e demonstrar que é possível traduzir, adequada e apropriadamente, de e para uma língua estrangeira, a partir de uma formação especializada do tradutor, de seu exercício consciente da profissão e de sua contínua qualificação”. (p. 15) O capítulo defende o uso de estratégias de tradução e salienta sua relevância para o tradutor novato, rebatendo a ideia de que a tradução seja uma arte ou dom sem muita explicação ou análise. A tradução é pensada como uma atividade que requer diversos conhecimentos e habilidades (apreendidos da observação do comportamento do tradutor experiente).

Unidades de tradução — o que são e como operá-las (Fábio Alves)[editar | editar código-fonte]

Aqui Fábio Alves aborda a questão da segmentação do texto-fonte em unidades de tradução (UTs), mostrando como as teorias divergem quanto à delimitação do tamanho desses segmentos, variando desde a palavra até o texto todo. Sem querer estabelecer um conceito rígido de unidade de tradução, o livro apresenta-a, através dos exercícios, como uma ferramenta de trabalho flexível de acordo com as necessidades do tradutor. Assim, para o autor, unidade de tradução é:

um segmento do texto de partida, independente de tamanho e forma específicos, para o qual, em um dado momento, se dirige o foco de atenção do tradutor. Trata-se de um segmento em constante transformação que se modifica segundo as necessidades cognitivas e processuais do tradutor. A unidade de tradução pode ser considerada como a base cognitiva e o ponto de partida para todo o trabalho processual do tradutor. Suas características individuais de delimitação e sua extrema mutabilidade contribuem fundamentalmente para que os textos de chegada tenham formas individualizadas e diferenciadas. O foco de atenção e consciência é o fator direcionador e delimitador da unidade de tradução e é através dele que ela se torna momentaneamente perceptível. (p. 38)

Estratégias de busca de subsídios externos — fontes textuais e recursos computacionais ( Adriana Pagano)[editar | editar código-fonte]

Este capítulo trabalha as estratégias de busca, em fontes externas, de informações e conhecimentos essenciais ao entendimento do texto. Assim, é treinada a consulta a textos paralelos, a utilização de dicionários, o recurso a especialista, a utilização da Internet e recursos computadorizados. Essa habilidade de busca é trabalhada por meio de exercícios de tradução nos quais o aprendiz se depara com a necessidade desses recursos.

Estratégias de busca de subsídios internos — memória e mecanismos inferenciais (Fábio Alves)[editar | editar código-fonte]

Aqui é trabalhada a utilização, como apoio interno ao longo do processo tradutório, das habilidades de inferência e associação, a partir do conhecimento de mundo do tradutor. O conhecimento de mundo, segundo o autor, incluiria “toda nossa bagagem cultural, e o conhecimento procedimental que nos ensina como utilizar o que já conhecemos” (p. 57). A partir desse conhecimento que processamos as informações novas e estabelecemos inter-relações entre os fatos que já aprendemos, isto é, realizamos inferências. Todo esse apoio interno é uma habilidade muito importante na prática da tradução, já que esta, diz o autor, “é uma tarefa que decorre principalmente do bom gerenciamento de informações, inicialmente compreendidas e posteriormente reproduzidas, usando-se para tanto um mecanismo de transferência linguística”. (p. 70)

Estratégias de análise macrotextual — gênero, texto e contexto (Célia Magalhães)[editar | editar código-fonte]

Neste capítulo Célia Magalhães comenta e exercita o uso da estratégia de reconhecimento e análise de aspectos macrotextuais, como gênero discursivo e padrões retóricos. Gêneros discursivos seriam “‘formas convencionais de textos’, que refletem as funções e os objetivos de eventos sociais determinados bem como os propósitos dos participantes desses eventos” (p. 72). São exemplos de gêneros textuais um sermão religioso, um artigo científico ou uma interação entre um médico e seu paciente. Já os padrões retóricos são “quadros conceituais que permitem classificar os textos quanto às intenções comunicativas que servem a um propósito retórico global” (p. 72). Certos autores distinguem três tipos principais de padrões retóricos: o expositivo, o argumentativo e o instrucional, podendo cada um deles ser composto de subtipos como a narrativa, a descrição etc. Cada gênero textual fará uso de padrões retóricos convencionais, conforme a expectativa da comunidade usuária. Também neste capítulo é abordada a questão da contextualização, tanto no nível textual, com noções de coesão e co-texto, como num nível mais abrangente, no qual entra em jogo o contexto da situação. Essas estratégias de análise macrotextual visam a conscientizar o tradutor do leitor especial que é e “da importância do conhecimento das relações textuais e contextuais para a sua produção do novo texto”. (p. 85)

Estratégias de análise microtextual — os níveis lexical e gramatical (Célia Magalhães)[editar | editar código-fonte]

Depois de trabalhar com as estratégias de análise macrotextual no capítulo anterior, a autora passa aqui para a estratégia de análise microtextual, “examinando itens lexicais, desde a palavra até as colocações e expressões idiomáticas metafóricas, além de itens gramaticais, desde o uso de tempos verbais até a ordem das palavras na frase” (p. 86). Para fazer este exame minucioso do texto, a autora utiliza problemas de tradução causados pela não equivalência entre os itens lexicais e gramaticais do português e do inglês. No nível lexical, mostra como as palavras podem assumir significados diferentes conforme o co-texto e o contexto geral, e como o léxico de uma língua se constrói por “seleções e convenções, metafóricas ou não, que restringem o uso de palavras no ato de comunicação” (p. 111). No nível gramatical foram estudadas as questões que regem a morfologia e a sintaxe de uma língua.

Um modelo didático do processo tradutório — a integração de estratégias de tradução (Fábio Alves)[editar | editar código-fonte]

Com base nos capítulos anteriores, aqui é formulado um esquema didático com sete etapas processuais da tradução, utilizando as estratégias desenvolvidas:

  1. Automação: são as decisões previamente internalizadas, relativas ao chamado Bloco Automático (BA), que contém as UTs para as quais o tradutor já tem equivalências pré-estabelecidas.
  2. Bloqueio Processual: quando o tradutor não encontra uma equivalência no Bloco Automático e não consegue operar a UT no Bloco Reflexivo (BR), por falta de competência linguística ou tradutória, ele pode eliminar a UT do processo tradutório ou até, em casos extremos, interromper todo o processo.
  3. Apoio Externo: quando o tradutor desconhece totalmente a UT a ser traduzida, pode recorrer a apoio externo: dicionários, sites na Internet, enciclopédias, glossários, literatura técnica especializada, textos paralelos, informantes etc.
  4. Apoio Interno: operações mentais como a recuperação de informações previamente armazenadas na memória ou processos inferenciais para tomar uma decisão de tradução. Aqui entram “as associações, os jogos de palavras, os momentos de imaginação, inspiração e intuição que são tão importantes e, até mesmo, vitais para o processo tradutório”. (p. 117)
  5. Combinações de Apoio Externo e Interno: o tradutor alterna entre os dois tipos de apoio e utiliza-os paralelamente ao longo do processo tradutório.
  6. Priorização e Omissão de Informações: valendo-se de seus conhecimentos das características macro e microtextuais do texto, o tradutor toma decisões de priorização e omissão das informações deste. “Poderíamos dizer que o tradutor decide com o intuito de obter o maior efeito contextual com o menor esforço processual possível.” (p. 117)
  7. Aperfeiçoamento do Texto de Chegada: o modelo prevê que o tradutor pode revisar todo o processo tradutório, recomeçando a tradução se desejar ou apenas melhorando a tradução de algumas UTs.

Os autores concluem o livro com quatro constatações que, segundo eles, representam a culminação da proposta desenvolvida:

  • Conhecimento das diferentes etapas cognitivas do processo tradutório gera uma maior conscientização para o seu gerenciamento.
  • Quanto maior o grau de conscientização do tradutor, maiores as chances de uma aplicação bem-sucedida de técnicas e estratégias de tradução.
  • Quanto maior for o grau de monitoração consciente do processo tradutório, maior será o grau de segurança do tradutor para tomar decisões de tradução.
  • Quanto mais consciente for o tradutor, maior será o grau de qualidade do texto de chegada.

(p. 128)